Gênero Textual

A escrita proporcionou ao homem poderosas funções na sociedade. Desde seu advento, há cerca de cinco mil anos, o texto escrito tem sido um grande fator de mediação entre as pessoas. Com o desenvolvimento dessa escritura, ocorreram outras formas de escrever e de situações que a requereram. Ao longo do tempo, o ensino da escrita preocupou-se com adequação de regras e correções textuais (Cf. Bazerman, 2011, p. 15). Hoje, ter sucesso na escrita requer a produção de muitas de suas formas e em diferentes gêneros textuais.

Tal qual a língua, os gêneros textuais fazem parte da ação comunicativa do homem. Uns mais ativos, outros, já considerados inativos, a depender das características de cada cultura, história e necessidade de comunicação. Marcuschi (2010, p. 20) ressalta que em uma comunidade oral, por exemplo, desenvolveu-se um número limitado de gêneros; contudo, após o advento da escrita, por volta do século VII a.C., os gêneros multiplicaram-se. A partir do século XV, com a cultura impressa, os gêneros expandem-se, e no século XVIII, com a industrialização, ampliaram-se mais ainda. Atualmente na dita “cultura eletrônica”, ocorre a explosão de novos gêneros, tanto na oralidade, quanto na escrita.
No Brasil, o trabalho com os gêneros foi intensificado com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP), de 1º ao 4º ciclos, pelo Ministério da Educação (MEC), em 1997/1998, documentos os quais têm uma normativização e regulação para o sistema educacional. Com essa publicação, ensinar por meio de gêneros textuais tornou-se finalidade do ensino (Cf. Carvalho, 2011). Veremos ainda que os gêneros mudam e são construtos sociais, funcionais. Elencaremos a seguir vários conceitos de gêneros textuais, a fim de estabelecermos a ideia deste a ser utilizada em nosso trabalho. O conceito por muitos defendido é a definição de Bakhtin, segundo ele
A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais - , mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1997, p. 280)
A oralidade, ou a escrita, é resultado desses enunciados produzidos nas diversas atividades do homem. Nesse caso, os gêneros são atrelados a uma função e a uma situação específica, pois Bakhtin relata sobre “condições específicas e finalidades”. Além disso, também elenca as características do gênero textual, que são: i) conteúdo; ii) estilo verbal; iii) construção composicional; iv) situação específica da esfera comunicativa. Todas essas características são implicadas em enunciados estáveis, os quais apontam qual é o gênero. Quando Bakhtin usa o termo “estável” para caracterizar o gênero, devemos, sobretudo, pensar em que tipo de estabilidade se trata, pois esta é frugal, fugaz, visto que é “constantemente ameaçada por pontos de fuga, por forças que atuam sobre as coerções genéricas” (BRANDÃO, 2000, p. 38).
Muitas vezes, as necessidades sociais se modificam, assim também podem mudar os gêneros; outrossim, muitos gêneros se parecem com outros, possuem algumas semelhanças, são os ditos gêneros satélites, tal qual o diário reflexivo e a autobiografia, com algumas características comuns, parecidas, o que faz com que essa estabilidade seja frágil, não seja tão delimitada. Bakhtin também aborda a grande variedade de gêneros e que “cada esfera da atividade comporta uma repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se a ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (1997, p. 280). Dessa forma, os gêneros mudam de acordo com a necessidade da esfera de comunicação.
Bazerman (2011, p. 32) observa que os gêneros são o que as pessoas reconhecem, e o que acreditam que sejam, ou seja, “fatos sociais [os quais] emergem nos processos sociais em que pessoas tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos”. Ainda afirma que os gêneros “são parte do modo como os seres humanos dão forma às atividades sociais”. Muito do que Bazerman fala está relacionado ao reconhecimento do outro e da situação, como se o sujeito identificasse o que o outro fala, o que o texto fala e encapsulasse suas características e funções.

Ao reconhecer o gênero, o sujeito identifica a situação e antecipa, por meio de projeções imaginárias, quais serão as reações do interlocutor, como uma demarcação do mundo envolvido, identificação dos símbolos, das emoções, das significações. Esse reconhecimento do gênero envolvido pode se dar por nomeação, por institucionalização etc. Esses padrões, digamos assim, estão na organização social, na interlocução letrada (Cf. Bazerman, 2011, p. 49, 51). Brandão (2000) diz que Bakhtin já abordava sobre essa antecipação, reconhecimento do gênero, como um encapsulamento do gênero, pois segundo Bakhtin (1991 apud BRANDÃO, 2000, p. 37) “quando um indivíduo fala/escreve ou ouve/lê um texto, ele antecipa ou tem uma visão do texto como um todo acabado justamente pelo conhecimento prévio do paradigma dos gêneros a que ele teve acesso nas suas relações de linguagem”.
Marcuschi (2008, p. 155) afirma que o gênero textual são os textos que se materializam em situações comunicativas recorrentes, textos que encontrados em nosso cotidiano e que “apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas”. Ele ainda afirma que os gêneros textuais “são entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em designações diversas” (Idem). Assim, o gênero textual caracteriza-se como social, funcional, histórico, institucional. Marcuschi (2008) aponta que ao analisar um gênero textual, viabiliza-se analisar o texto, o discurso, a língua, visão social, pois, segundo ele, os gêneros, além de fatos sociais, caracterizam-se também como artefato cultural. Explicitamos na imagem.
Esquema 7: Gênero textual
                                                               Gênero textual
                                       texto                                                    
                                                            língua discurso     cultura  visão social
Fonte: Baseado em Marcuschi (2008, p. 149).
Trata-se de texto porque a língua e o discurso se materializam nele, por meio de um gênero textual que é constituído socialmente. Marcuschi (2008) ainda afirma que nos gêneros textuais ocorrem ações de ordem da comunicação em que as estratégias são convencionalizadas, visto que cada gênero tem um objetivo claro, um estilo, um conteúdo, uma esfera de circulação, mas a determinação desse gênero se dá pela sua função e não pela forma. Assim, não se pode tratar gênero fora do escopo real, social e nem fora das atividades humanas (Op. Cit).
Dominar um gênero, nas palavras de Marcuschi, não é dominar suas formas linguísticas, mas dominar as formas linguísticas em propósitos e em situações sociais particulares. É impossível não se comunicar por meio de textos realizados em algum gênero, pois para ele “os gêneros textuais não se caracterizam nem se definem por aspectos formais, sejam eles estruturais ou linguísticos, e sim por aspectos sociocomunicativos e funcionais” (MARCUSCHI, 2008, p. 22).
Dell’Isola (2007) ao estudar os gêneros textuais, observa que estes são práticas localizadas de forma sócio-histórica, ações “para agir sobre o mundo e dizer o mundo”, pois
por serem fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social; fruto do trabalho coletivo; formas de ação social; modelos comunicativos; eventos textuais, os [gêneros textuais] apresentam características comunicativas, cognitivas, institucionais e linguísticas/estruturais, cuja finalidade é predizer e interpretar ações humanas em qualquer contexto discursivo, além de ordernar e estabilizar as atividades comunicativas cotidianas” (DELL’ISOLA, 2007, p. 17).
Vimos que os gêneros são oriundos de uma sociedade, agindo sobre ela, funcionando para o discurso. O sujeito prediz, antecipa a situação, o que o outro diz, encapsula tudo, reconhecendo o gênero. Assim também Bathia (1993 apud  DELL’ISOLA, 2007, p. 17) afirma que o gênero “é um evento comunicativo reconhecível caracterizado por um conjunto de propósito(s) identificado(s) e mutuamente entendido(s) pelos membros da comunidade profissional ou acadêmica na qual regularmente ocorre”.
Bronckart (1994 apud DELL’ISOLA, 2007, p. 18) diz que “os gêneros constituem ações da linguagem que requerem do agente produtor uma série de decisões para cuja execução ele necessita ter competência”. Essas decisões são caracterizadas como escolhas a serem realizadas a partir dos gêneros que existem, ou seja, o sujeito escolhe um gênero dentre tantos outros, aquele que ele identifica como sendo o mais adequado ao contexto e à situação de interação. Em seguida, ocorre a aplicação do gênero escolhido, acrescentando-se algo ou mesmo recriando-o.
Pinto (2010, p. 55), na esteira dos estudos de Bronckart, ressalta que o texto é compreendido como um produto concreto, resultado da ação da linguagem, e, dessa forma, todo texto que pode ser observado, deve ser incluído a um tipo de gênero. Ocorre, portanto, segundo Bronckart, em “uma atividade humana implicada, [num] efeito comunicativo visado, [em um] tamanho de texto, conteúdo, entre outros”. Também Adam afirma que “os gêneros são um conjunto de textos que apresentam características sociocomunicativas definidas por conteúdo, propriedades funcionais, estilo, composição e canal” (ADAM, 1999 apud DELL’ISOLA, 2007, p. 18).
Já para Coutinho (2004 apud DELL’ISOLA, 2007, p. 21), “o gênero é aquele que condiciona a atividade enunciativa”. Coutinho fala sobre enunciado, ou melhor, sobre capacidade enunciativa, quer dizer que há relação entre texto e discurso, como um contínuo e que o gênero é condicionado por essa capacidade enunciativa. Observemos o esquema:
Esquema 8: Gênero segundo Coutinho (2004)
 


                Discurso                               Gênero                                 Texto (objeto empírico)
                   
       (objeto do dizer)
Fonte: Baseado em Coutinho (2004 apud DELL’ISOLA, 2007, p. 21).
O discurso é associado a uma prática social, institucionalizada e historicamente situada, pois a língua em sua interação não pode ser vista apenas como codificação, mas em seu plano discursivo. O texto é tratado como objeto empírico, discursivo em relação aos dizeres dos sujeitos; e na condição de gênero, como prática social, pois “entre o discurso e o texto está o gênero que aqui é visto como prática social e prática textual-discursiva. O gênero opera como a ponte entre o discurso, como uma atividade mais universal” (DELL’ISOLA, 2007, p. 21-22), além disso, o “texto é tido como uma peça empírica particularizada e configurada numa determinada composição observável” (Idem, p. 22).
Dolz & Schneuwly (2004, p. 47) afirmam que o gênero é atrelado a uma metáfora de mega-instrumento para atuar (agir) em situações de linguagem, constitutivo de uma situação. Exemplifica que o gênero romance só pode ser como tal se houver leitura e escrita de romance. Assim, o gênero atua em relação à situação de comunicação. Para os autores, os gêneros caracterizam-se como
a)       Conteúdos que são (que se tornam) dizíveis através deles;
b)       A estrutura (comunicativa) particular dos textos pertencentes ao gênero;
c)       As configurações específicas das unidades de linguagem, que são, sobretudo, traços da posição enunciativa do enunciador;
d)       Conjuntos particulares de sequências textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura.
Dessa maneira, em nosso trabalho, utilizaremos a noção de gênero textual atrelado às suas características e implicações sócio-históricas, em que a atividade de produção escrita tem os seguintes pressupostos:
·                escritores produzem textos com base em “modelos” constituídos socialmente, razão pela qual, de um modo geral, não temos dificuldade de produzir, por exemplo, um bilhete;
·                os modelos são abstrações de situações que participamos e do modo de nos comportarmos linguisticamente, portanto, em sua constituição, entram de forma inter-relacionada aspectos cognitivos, sociais e interacionais;
·                os modelos são constituídos e reconstituídos ao longo de nossa existência em decorrência de inúmeras práticas sociais de que participamos. (KOCH & ELIAS, 2012, p. 58)
FONTE:
HERÊNIO, KERLLY KARINE PEREIRA. ESTUDO DO REGISTRO ACADÊMICO CONVENCIONAL E DA ESCRITA REFLEXIVA: CIRCUITO CURRICULAR COMO MEDIAÇÃO SUSTENTÁVEL ATRAVÉS DE GÊNEROS NO ENSINO MÉDIO.

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