Entender Sartre para a Redação Vestibular
“A realidade humana não tem desculpas: somos responsáveis pelo mundo, porque o elegemos. O homem é o único legislador de sua vida, e a única lei de sua existência diz apenas: ‘escolhe-te a si mesmo’. Ou então, ‘fazer e, ao fazer, fazer-se’. A cada momento o homem deve escolher o seu Ser, lançando-se continuamente a seus possíveis e constituindo pouco a pouco a sua essência, através dessas escolhas, contando, para agir, somente com a voz de sua consciência.”
A FILOSOFIA DE SARTRE
O existencialismo de Sartre foi uma das correntes mais importantes do pensamento francês, ganhando força, sobretudo, nas décadas de 1950 e 1960, com forte repercussão na filosofia, na literatura, no teatro e no cinema. Considerado por muitos o símbolo do “intelectual engajado”, Sartre adaptava sempre sua ação às suas ideias, e o fazia sempre como ato político. Foi aquele intelectual cujo pensamento influenciou tendências e atitudes, pronunciando-se sobre acontecimentos políticos, sociais e culturais de seu tempo (maitre à penser). O termo sartriano tornou-se sinônimo de livre-pensador.
Para Sartre, o homem é um tipo diferente de ser, pois pode pensar sobre a própria consciência e sobre o mundo ao seu redor. Para o homem que se define por sua autoconsciência, existir e refletir são a mesma coisa. A consciência humana não tem uma essência definida, não tem um criador que tenha dado uma finalidade a priori para sua vida: “O homem é um ser pelo qual o nada vem ao mundo”.
O que resta ao homem? Sua liberdade, consequência básica dessa constatação. A única opção é criar. É durante a própria existência que o homem define, a cada momento, o que ele é. Em outras palavras, o homem constrói os significados de sua vida, seus objetivos, metas, valores, sua visão de mundo, seu sentido. O homem é o único responsável por seus atos e escolhas, criador de sua existência autêntica. Vivemos presos numa teia de significados que nós mesmos criamos diante de um mundo que, sozinho, nada significa. Não há nenhuma ética pronta, anterior a nós mesmos, para nos guiar. Não há tábuas de apoio ou pretextos. Por isso, no homem, “a existência precede a essência”.
Sartre tinha plena consciência de como essa filosofia é extremamente angustiante: em vez de aceitarmos valores prontos dados pela Igreja ou por uma tradição qualquer, somos completamente responsáveis por nossos atos, por nossas escolhas, valores e sentidos. Em vez de consumir éticas enlatadas, temos que produzir a nossa própria. Viver é uma escolha: são as escolhas de cada homem que definirão a sua essência. E mais: essas escolhas podem afetar, de forma irreversível, o próprio mundo. A angústia, portanto, vem da própria consciência da liberdade e da responsabilidade em usá-la de forma adequada: “O homem está condenado a ser livre”.
O melhor para sermos felizes, então, não seria assumir um sentido para a vida pronto, como uma religião qualquer ou a busca pelo dinheiro? Não. A filosofia de Sartre defende a liberdade e a autenticidade de cada ser humano como essenciais, não obstante a angústia que tal liberdade pode nos trazer. Sartre chama de má-fé a atitude daqueles que, renunciando à própria liberdade, assumem um papel pronto na sociedade; aqueles que não são sujeito, mas objeto da própria vida. Fonte: Guia do Estudante.
“Professor! E Sartre na redação do vestibular
– posso usar?”
“Não importa o que fizeram com você, mas sim o que você faz com o que fizeram de você”. Em época de redação de vestibular, vejo alguns professores (!) ensinando os alunos a utilizarem essas frases para rechear seus textos. O aluno é educado, então, para se transformar nos palestrantes que carregam títulos de filósofos por aí. Tornam-se fazedores de frases de auto-ajuda, texto motivacional ou texto falsamente problematizador ou até pessimista – também é moda a auto-ajuda pessimista, dá um ar blasé ao palestrante, e ele parece culto. O resultado para quem obedece esse tipo de coisa é que pode realmente nunca mais sair da condição de ser um palestrante, ou seja, corre o risco de nunca mais poder pensar.
A frase é de Sartre, e já vi um bocado de gente que acha que entende de filosofia repeti-la e explicá-la. Mas de modo errado. A doutrina de Sartre é explicada por esse pessoal capenga como adepta da filosofia que exige do homem a liberdade, que o faz responsável extremado pelos seus atos, desconsiderando as relações sociais. Há até alguns que citam a vida infantil de Sartre, a perda do pai, e como que ele superou todas as condições histórico-sociais para realizar o que tinha de realizar. Ele, Sartre, construiu seu destino. Um herói. Uma interpretação assim faz de Sartre um filósofo da essência, no sentido contrário da filosofia da existência que ele defendeu.
Sartre elegeu a existência como o que é feito pelo barro adamítico. A existência não é a condição do homem. O homem é que não é homem sem existir como homem, ou seja, completamente prenhe das dificuldades da vida de homem. Desse modo, se o homem é alguém livre, alguém que escolhe, ele não o faz por ser aquele que tem uma essência a se realizar, mas sim alguém que vai criando um projeto no interior dos mil e um projetos em que já está, não deliberados por ele.
Muitos pensam o homem essencial, que é livre por estar fora do mundo e, então, uma vez no mundo (nascimento, queda, “incorporação”, etc), pode recordar de sua missão extra-mundo, anterior, e decidir realizá-la. Ou pode inventar uma e usar de sua essência não mundana para se por como fazedor de projetos mirabolantes. Ora, Sartre não reconhece o homem como sendo assim, ele só vê o homem como homem enquanto aquele que está sempre sendo produzido pelos outros. “Não importa o que fizeram com você”. Claro que importa. O “não importa”, nessa frase, é para poder abrir espaço para o que é enunciado após a vírgula: “mas sim o que você faz com o que fizeram com você”. Nesse caso, o que fizeram com você já foi feito. Você sempre pode decidir, mas segundo o que já fizeram de você. Siga o exemplo abaixo.
Posso sair da cadeia hoje e, então, me importar em não voltar a ela, decido não cometer nenhum crime, mas sou um ex-presidiário, não vou apagar isso da cabeça dos outros, terei de saber viver com isso; dizer isso, pensar assim, é me importar em fazer algo de mim, diferente, mas a partir do que eu mesmo já fiz e do que me fizeram: matei um fascista que estava ameaçando minha família, e isso foi ato meu; mas talvez não tenha sido um ato meu me deixar apanhar e ter então me tornado um presidiário para, agora, ser ex-presidiário. Tenho agora de enfrentar pessoas que não estão nem aí para a condição de fascista do meu agressor, que eu agredi e matei. Importa agora, para muitos, o ser humano que matei. Sou ex-presidiário e, para muitos, eterno assassino. Vou operar minha vida nessas condições, não tenho outra, sou o que sou, agora, com meu RG e minha história. Não tenho outra vida ou outra história. Agora, tenho o que tenho. Não tenho nenhuma essência a realizar. Tenho apenas esse meu corpo e essa minha cabeça geográfica e historicamente situadas, já bem feitas por tudo que fiz e pelo que fizeram de mim. Vou operar com isso. Essa é a minha liberdade. Essa é a única liberdade. Vou ter de tomar decisões, exercer essa liberdade. Esse é o conceito de liberdade de Sartre.
Posso fazer o que com o que foi feito de mim até agora? Posso fazer tudo – sou livre. Mas quem pode fazer tudo? Eu! Não outro com mais inteligência que eu. Ele talvez possa fazer mais. Entre eu e o outro mais inteligente, ambos somos livres, mas em termos probabilísticos ele não terá mais liberdade, e sim aquilo que, depois, diremos: “teve mais sorte”. E isso se a inteligência dele, ou outros recursos, lhe trouxerem sucesso. Alguns então dirão, para negar Sartre: “ah, o ex-presidiário não podia mesmo se dar bem, ele não teve mais liberdade de opções”. Ora, chance não é liberdade para Sartre. Liberdade em Sartre é o ato de decisão que, enfim, tomamos, decidindo positivamente ou simplesmente não decidindo nada – o que é também uma decisão. Daí a frase “o homem é escravo da liberdade”. A liberdade não está posta antes ou depois, só na hora da decisão. Ela é o que se exerce, fora disso, é apenas conversa sobre liberdade, acepção de liberdade etc. A liberdade depende para ocorrer como liberdade que o homem se projete no mundo na hora da decisão. A decisão de seguir um caminho já posto ou outro, ou criar novo, ou não fazer nada.
É isso.
Vamos ver se ao menos a redação do vestibular de algum, se citar Sartre, não gere aquele tipo de escrita que só dá vergonha. E tomando isso que eu disse, talvez alguns até queiram ler Sartre e endossá-lo, ou criticá-lo, estudando filosofia (na faculdade) e não simplesmente fazendo vestibular para aquelas carreiras que pais, cursinhos e colegas dizem que é bom.
Paulo Ghiraldelli Jr., 60, filósofo. São Paulo, 09/11/2017
Paulo Ghiraldelli Jr Doutor e mestre em Filosofia pela USP. Doutor e mestre em Filosofia da Educação pela PUC-SP. Bacharel em Filosofia pelo Mackenzie e Licenciado em Ed. Física pela UFSCar. Pós-doutor em Medicina Social na UERJ. Titular pela Unesp. Autor de mais de 40 livros e referência nacional e internacional em sua área, com colaboração na Folha de S. Paulo e Estadão. Professor ativo no exterior e no Brasil.
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