REPERTÓRIO SOCIOCULTURAL PARA O TEMA "CRIME QUE JUSTIFICA CRIME"
Crime e Castigo, de Dostoiévski
Crime e Castigo é um dos maiores romances da
história e tem como uma característica o fato de ser um livro que reproduz a
angústia psicológica de um personagem que desde o início já sabemos ser um
assassino. O estilo de Dostoiévski é inconfundível, já que ele reproduz os
pensamentos e as dúvidas mais íntimas dos personagens. O romance começa
narrando a história de Raskólnikov, um estudante que vive de aluguel em um
pequeno apartamento, no qual ele tem cada vez mais dificuldade em honrar seu
compromisso . Raskólnikov ganha dinheiro fazendo pequenas traduções, no
entanto, vive à beira da miséria. Como é um jovem muito neurótico e
introspectivo,o estudante ( na verdade ex-estudante) durante seus vários
momentos ociosos formula uma tese que pensa ser original: homens como César e
Napoleão foram responsáveis por milhares de mortes, entretanto, foram
considerados pela história como grandes heróis e conquistadores. Por que
Raskólnikov pensa dessa maneira? Porque ele se vê oprimido pela velha- que no
livro simboliza o capitalismo devastador que Dostoiévski tanto
odiava.
Então Raskólnikov se questiona a respeito de uma
ideia que ele teve: se Napoleão matou milhares e foi absolvido pela história,
por que ele (o personagem) também não seria se matasse a velha que vivia
de juros? Não estaria ele fazendo um bem à humanidade? Essa pergunta reflete o
pensamento do próprio Dostoiévski, para quem as ideias moviam os homens, e não
os homens realizavam as ideias.
Toda a psicologia e a angústia de Raskólnikov no
momento em que se prepara para matar a velha são registradas de maneira
magistral por Dostoiévski. O leitor parece que está assistindo à cena. Então o
fato acontece, mas esse não é o momento crucial do livro, pois a melhor parte
está por vir.
Ninguém sabe que ele matou a usurária. Foi, na
verdade, um crime perfeito. Mas aí entra a grande questão: como superar o
sentimento de culpa que nunca foi descrito em nenhum livro que ele leu? Matar
milhares em nome da humanidade talvez seja mais fácil do que matar um único ser
humano, e isso Raskólnikov não previu. Outro aspecto psicológico do assassino
entra em cena que é o desejo de ser punido. Quando a polícia começa a
investigar o crime, Raskólnikov não é o primeiro suspeito, mas no momento em que
ele vai ser interrogado pelo juiz Porfiri Pietróvitch, todo o romance muda de
cena.
Raskólnikov vê-se diante de um opositor formidável,
porque aparentemente durante seu interrogatório o juiz parecia desconfiar que
ele era o autor do crime. Surge então na mente de Raskólnikov o sentimento de
prazer e de grandeza, uma vez que ele se alegra com o duelo de palavras e
gestos simulados que trava com o juiz. Ele sente prazer em ser mais esperto do
que Porfiri, pelo menos no primeiro instante.
À medida que os interrogatórios vão se
multiplicando, Raskólnikov percebe que está perdendo o controle da situação. O
juiz Porfiri aparenta ter certeza de que ele é o culpado e tenta fazer um jogo
psicológico com Raskólnikov para ver se ele confessa. Os diálogos são perfeitos
e até mesmo engraçados.
Mas o personagem encontra uma pessoa que o faz
sentir o amor pela primeira vez na vida. Essa é Sônia, uma prostituta
miserável. Sônia representa no romance a fé ortodoxa e a possibilidade de
redenção. Raskólnikov, que era um niilista, encontra uma luz durante um diálogo
com Sônia no qual a faz ler uma passagem do Evangelho. A passagem é do
Evangelho de São João que narra a ressurreição de Lázaro. Parece que a partir
desse momento Raskólnikov ressurge do mundo de fantasia, de culpa, de solidão e
de niilismo em que habitava. Mais adiante ele confessa para Sônia que foi o
autor do crime. Ela diz para ele confessar. Depois de muitos diálogos em que
sua psique foi quase reduzida a nada pelo juiz, Raskólnikov confessa o crime.
Ele é condenado à prisão de oito anos na Sibéria, onde influenciado pelo amor
de Sônia, sua regeneração moral vai ter início.
Raskólnikov pecou por malícia segundo a filosofia
Tomista, porque pecou pela eleição do mal. O personagem vivendo em um mundo
ocioso e orientado por leituras mal feitas, sem critério e que não buscavam à
verdade, se perde aos poucos. O teólogo cristão Orígenes já havia dito que ”
não se destrói ou se perde subitamente, mas que necessariamente se decai pouco
a pouco e por partes.” Primeiro Raskólnikov se isola; o seu caráter se
enfraquece; e, por último, lembrando as palavras do Gênesis, ” o pecado está à
porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele, tu deves dominar.” São
Tomás esclarece que o pecado da malícia vem de uma disposição corrompida que
inclina a pessoa para o mal, de tal modo que esse mal se torna em algo
conveniente. Isso pode advir de uma natureza corrompida ou de uma doença do
corpo. Ora, o pecado da malícia é muito mais grave que o pecado induzido pela
paixão, pois quando se peca pela paixão logo depois a pessoa volta a si e se
penitencia. Como o pecado de Raskólnikov é mais grave, o processo de penitência
e redenção deverá ser mais longo.
Esse é um romance que envolve muitos temas que vão
da psicologia à religião. Raskólnikov não consegue provar sua tese de que se
livrando de um ser desprezado pela sociedade, ele estaria se igualando a
Napoleão. De certa maneira permanece a questão: matar um é crime, mas
trucidar milhares é ser herói. A mentalidade do culpado procurado pela
polícia é descrita com grande precisão, se é que podemos dizer assim, já que
nunca sentimos isso. A fé cristã ortodoxa representada por Sônia é um tema
recorrente nas obras de Dostoiévski, porque o autor russo era do movimento
eslavófilo, que entre outras coisas acreditava na missão da Rússia como a
redentora do ocidente laicizado e como responsável por espalhar novamente a
mensagem do Evangelho, e também na adoção do antissemitismo, que está presente
em Crime e Castigo. A mensagem da ressurreição espiritual e moral de
Raskólnikov a partir de uma passagem do Evangelho e do amor por uma prostituta
pobre que não tinha a sua erudição histórica, no entanto possuía a fé em Cristo
em sua mente e em seu coração, poderíamos dizer que valerá para todas as épocas
que virão.
Crime e castigo: sociedade da vingança
“Olho por olho e o mundo acabará cego.” A frase celebre é de autoria de
Gandhi, e, como se pode notar, é atemporal e universal. Pela questão tempo
pode-se dizer que tanto no passado como no presente ainda vigora atual e muito
perspicaz. Pelo futuro pode-se dizer que a cegueira seria complemento de nosso
triunfo de vingança, não podendo encontrar nem ao menos um inocente: o mundo
vai acabar cego. Ao intitular com a famosa obra de Dostoiéviski a intenção é
chamar a atenção ao binômio crime/castigo e tentar definir numa breve síntese
circunstancial de crime e de castigo o que merece ser punido e qual a intenção
real do castigo. Para muitos, castigo refere-se a uma dolente e latente chaga
que cause entalhe no corpo ou ferida que não cicatrize. Ao entender a essência
do castigo os estudos nos retornam a uma fase histórica em que o ordálio sobre
o corpo se referia a um sistema rústico aos nossos olhos, mas muito prático em
sua época, em que inúmeras crenças consideradas hoje sádicas levavam a um sério
intento: o sofrimento do homem. Há quem diga ainda nos dias atuais que a
sociedade é indulgente com certos criminosos e que deveria agir o sistema
judiciário de maneira sempre enérgica, causando a dor assim que possível. Numa
concepção aqui se faz aqui se paga do problema, como se houvesse um verdugo em
cada situação prestes a achatar os dedos do condenado com um enorme martelo, a
dor deveria fazer parte do sistema de maneira institucionalizada, como se fosse
definido um horário para as torturas diárias. Já é complicado definir bem
jurídico penal, ainda mais em um mundo vingativo e revanchista. O que se
definiria por castigo seria ligado ao bem jurídico ofendido. Crime e castigo
nunca andam juntos quando o que se trata é a proporcionalidade tendo em foco a
sociedade do sadismo e da vendeta. Nesse contexto, se repete o pensamento:
nunca seriam proporcionais crime e castigo. Ainda mais quando ligados ao objeto
ou ao foco do crime, seja ele um patrimônio, uma vida ou a honra. No momento de
definir o valor de cada um desses bens se define também o castigo. Pois dessa
forma, poderiam haver bens que estão imunes, mesmo se violados, desse castigo
sádico e cruel imaginado pela sociedade? Por certo o direito penal responde que
o princípio da proporcionalidade é parte de sua linha de raciocínio, trazendo
inúmeras situações onde poderia haver esse perdão/indulto ou a desistência do castigo. Todavia, não é assim que se pensa
nesse contexto vivo e heterogêneo chamado sociedade. Os lobos estão por aí, e o
homem é o lobo do homem. O castigo é parte intrínseca do sistema carcerário
brasileiro, onde diversas facções e grupos tentam o controle dos chamados
pavilhões com o intuito único de vender e comercializar influências e drogas.
Muitos daqueles que, nas grandes penitenciarias não se enfileiram por diversos
motivos, muitas razões até distantes de seu conhecimento, são jogados de cima
do telhado das cadeias no primeiro motim, conflito ou negociações agressivas.
Muitas cabeças decepadas do corpo encontradas nos pátios de convívio eram de
presos de menor periculosidade ou menos influentes dentre os detentos, que
estariam lá apenas para fazer valer o exemplo. A temeridade é que o castigo
real ocorra e seu custo seja muito maior daquele que se pode suportar, ou,
pelos olhos da sociedade do sadismo, que se deve suportar. Nas delegacias nos
centros e bairros da cidade, onde comportam apenas poucos detentos que seriam
aqueles que permaneceriam lá apenas por um período, como nos casos de
flagrantes, a superlotação é sintoma da anomalia que cresce diariamente. É
fácil encontrar presos sem motivos de ali estarem, pagando a sua parte de um
castigo muito maior que seu crime. Sem falar dos profissionais de segurança
pública; policiais civis, escrivães e delegados que acabam convivendo com o
receio de um resgate de presos por parte de facções, de brigas entre detentos
que acabam em rebeliões, devido à cela comportar dez indivíduos estar com
trinta e cinco. E ainda há quem diga que o encarcerado não deve se sentir em
colônia de férias e sim deve sofrer a sua punição. Como se não sofresse.
Entretanto, é essa a função da pena? Punição? Sim, de fato, em nossa realidade,
a função é punição. Essa funcionalidade legitima o poder de trancafiar tantos
em pequenos espaços insalubres, legitima o poder do Estado de fazer sofrer quem
bem entender que esteja na malha criminal como autor do fato ou pasmem!, o
acusado. Essa é a motivação da sociedade do pânico e do sadismo: acorrentar e
fazer sofrer aqueles diferentes que os fazem muitas vezes, tremer sem motivos,
resguardando a possibilidade de algum dia haver algum motivo. Se castigo é dor,
qualquer penitenciaria ou cadeia é castigo, pois a punição seria a função da
pena. Não se pode deixar de observar algo certo que é o retorno do individuo em
sociedade, onde depois de tanta dor é passível que negue o mundo que também o
negou um dia. Não há ressocialização e sabe-se disso. A pena deveria ser
proporcional ao crime, mas em nossas condições, nas bases dos estabelecimentos
prisionais no País, a pena nunca é proporcional, mas sempre emblemática. A
sociedade que busca vingança pode ficar tranquila: em toda penitenciaria a lei
do olho por olho é imperativa. Muitos ao sair do sistema carcerário não
enxergam continuidade na vida dos lados de fora dos muros, retornando em
seguida ao seu interior. Muros estes que deveriam conter a seguinte inscrição,
com toda pompa merecida: Deixai toda esperança, vós que entrais.
REFERÊNCIAS
Canto III, Inferno, A divina Comédia, Dante Alighieri.
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